Direito Educacional em Juízo: A Questão do Corte Etário e a (Im)possibilidade de Distinguishing na Prática jurídica Real)

Direito Educacional em Juízo: A Questão do Corte Etário e a (Im)possibilidade de Distinguishing na Prática jurídica Real)

Postado em 17/07/2025

Por Emília Queiroz - Advogada e Professora. Presidente da Comissão de Direito Educacional da OAB/PE. Diretora de pós-graduação da ESA/PE.


A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando. Há no sistema jurídico nacional grandes discussões sobre o critério de corte etário para inserção de crianças no ensino fundamental, motivo pelo qual vários colégios fazem contagem progressiva para ingresso em algumas séries do Ensino Infantil. 

Houve julgamento da ADC 17/2020, ADI 6312/RS e ADPF 292/2020 no STF, com destaque para debates acalorados entre os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux, exatamente pela fixação pragmática da idade de 6 anos “completos” para ingresso no Ensino Fundamental. 

Essas ações reconhecem que cabe ao Conselho Nacional de Educação definir de fato tal critério, excetuando-se as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, para que se padronize o sistema nacional de educação, com foco na definição de currículos etc.

Tais discussões são oriundas da necessidade de cobrança do cumprimento da obrigação estatal de fornecimento de educação infantil (creches) e fundamental para as crianças e servem como critério positivo para que o Governo forneça vagas para esse público, que tem especial proteção constitucional.

Mas, a prática jurídica pode trazer situações divergentes, que façam caber o distinguishing para que se perfaça o acesso à justiça pleno no caso real. É o caso, por exemplo, de uma criança que já está incluída no sistema educacional e tem parecer técnico de adequação e prontidão para o Ensino Fundamental na rede particular de ensino, mesmo não estando dentro do intervalo cronológico de aniversário imposto pela lei. Trata-se de uma progressão evolutiva pelos resultados obtidos pela performance pessoal da criança na vida escolar na qual já está ambientada e inserida.

Jean Piaget desenvolveu tese sobre maturação de estágios intelectuais, que impactam no processo educacional, definindo os períodos de prontidão, que são pessoais e particulares de cada ser humano. Tais períodos são termômetro para definir a fase pela qual a criança se insere e as necessidades próprias de cada uma. 

Ainda que a Resolução nº 02/2018 do CNE dite limite etário cronológico para matrícula no ensino fundamental, o que provoca cálculo regressivo para as séries anteriores, os preceitos contidos em normas de educação deverão ser interpretados à luz da norma constitucional, que no caso concreto garante o direito à educação pleiteado pela impetrante. Isto é, tomando como base interpretativa o critério hierárquico das normas, os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal prevalecem sobre qualquer outro dispositivo infraconstitucional.

Universalmente vive-se o processo inclusivo, segundo o qual cada indivíduo deve ser visto e tratado dentro de suas peculiaridades, tanto é que o próprio Ministro Luiz Fux, relator da ADPF 292, posicionou-se no sentido de que: 

Quanto à permanência, a uniformização impede que, na hipótese em que, por qualquer causa pessoal ou familiar, a criança precise mudar de escola, haja prejuízo ao seu desenvolvimento escolar. Ser obrigada a repetir o ano pelo simples fato de coexistirem diferentes datas de corte etário obstaculiza o acesso à educação, na concepção do reingresso. Não raro a consequência poderá ser a evasão escolar, vício gravíssimo que tanto assombra o sistema nacional de educação.” A hipótese é excepcionalíssima frise-se e sob nenhuma condição pode se traduzir em direito subjetivo do aluno, a suplantar a avaliação do profissional mais gabaritado. Isso porque, com igual status constitucional figura a “valorização dos profissionais da educação escolar”, prevista no artigo 206, inciso V, da CRFB.

Some-se, ainda, que a pluralidade de níveis cognitivo comportamentais em sala de aula contribui para ampliar a visão de mundo e desenvolver oportunidades de convivência a todas as crianças. O estímulo à diversidade, à tolerância e à solidariedade é o que motiva, dentre outras razões, a chamada Educação Inclusiva, que abraça crianças com necessidades educacionais especiais (CARVALHO, Rosita. Diversidade como paradigma de ação pedagógica na Educação. In Revista da Educação Especial. MEC/SEESP. Out. 2005). (STF - ADPF: 292 DF 9991938-52.2013.1.00.0000, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 01/08/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 27/07/2020).

Do texto do voto do relator da ADPF, Ministro Fux, conclui-se que:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ARTS. 2º E 3º DA RESOLUÇÃO 1, DE 14 DE JANEIRO DE 2010, E ARTS. 2º A 4º DA RESOLUÇÃO 6, DE 20 DE OUTUBRO DE 2010, DA CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA (CEB) DO CONSELHO NACIONAL DA EDUCAÇÃO (CNE). ALEGAÇÃO DE OFENSA REFLEXA À CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA. NÃO CONFIGURAÇÃO. MÉRITO. CORTE ETÁRIO PARA MATRÍCULA NO ENSINO INFANTIL E NO ENSINO FUNDAMENTAL. CONSTITUCIONALIDADE. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. NÃO OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO AO PRECEITO DA ACESSIBILIDADE À EDUCAÇÃO INFANTIL. NÃO OCORRÊNCIA. DISCRICIONARIEDADE DO ADMINISTRADOR PÚBLICO. CRITÉRIO DEFINIDO COM AMPLA PARTICIPAÇÃO TÉCNICA E SOCIAL. GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO PÚBLICO. PEDIDO IMPROCEDENTE. (...)

8 . O acesso aos níveis mais elevados do ensino, segundo a capacidade de cada um, pode justificar o afastamento da regra em casos bastante excepcionais, a critério exclusivo da equipe pedagógica diretamente responsável pelo aluno, o que se mostra consentâneo com a “valorização dos profissionais da educação escolar” (art. 208, V, da CRFB e art. 206, V, da CRFB) e o apreço à pluralidade de níveis cognitivo-comportamentais em sala de aula.

(...) (STF - ADPF: 292 DF 9991938-52 .2013.1.00.0000, Relator.: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 01/08/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 27/07/2020 – Grifos Nossos)

Temos, ainda, no julgamento da ADI 6612/RS, de Relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, os argumentos da Ministra Rosa Weber, no sentido de que: 

Na realidade, tal como já acentuei nesta Suprema Corte no julgamento conjunto da ADC 17/DF e da ADPF 292/DF, em sessão plenária ocorrida em 01/08/2018, entendo, com a devida vênia aos que compreendem de forma diversa, que a estipulação de recortes etários entre as crianças, afastando o acesso imediato à escola àquelas que completarem 06 (seis) anos de idade somente após a data limite para matrícula no primeiro ano do ensino fundamental (dia 31 de março), caracteriza uma indevida restrição ao exercício do direito constitucional por elas titularizado de obter acesso à educação (CF, art. 208, § 1º), em igualdade de condições com as demais (CF, art. 206, I), e configura injusto obstáculo ao ingresso no ensino fundamental, “segundo a capacidade de cada um” (CF, art. 208, V), mostrando-se incompatível com a diretriz constitucional que preconiza a proteção integral e a primazia dos interesses das crianças (CF, art. 227, caput)”. (STF - ADI: 6312 RS 0085887-62.2020.1.00.0000, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 21/12/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 11/02/2021 – Grifos Nossos).

O critério etário deve ser analisado positivamente, de forma a incluir as crianças na rede obrigatória de ensino e não negativamente para condenar criança que teve rendimento satisfatório e está em período de prontidão para cursar o Ensino Infantil a repetir de ano e necessariamente se desmotivar, podendo se chegar até em evasão escolar, gerando danos irreversíveis à visa socio acadêmica da criança. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Pernambuco já se pronunciou: 

REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. MENOR MATRICULADO NO INFANTIL II. EXIGÊNCIA DE MATRÍCULA NO INFANTIL III. IMATURIDADE INTELECTUAL COMPROVADA. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. PRIVILEGIADOS OS PRINCÍPIOS PEDAGÓGICOS INERENTES AO DESENVOLVIMENTO INTELECTUAL DO ESTUDANTE. SENTENÇA PROCEDENTE. REEXAME DESPROVIDO. DECISÃO POR UNANIMIDADE DE VOTOS.  (...) Assim, entende-se que não se deve privilegiar o critério etário (em que pese ser legal) em detrimento do desenvolvimento e maturidade da criança, devendo ser assegurados os princípios pedagógicos inerentes ao desenvolvimento intelectual do menor. TJ-PE - REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL: 00024627120188173130, Relator: ERIK DE SOUSA DANTAS SIMOES, Data de Julgamento: 28/04/2020, Gabinete do Des. Erik de Sousa Dantas Simões.

Neste caso, o TJPE reconheceu que o desenvolvimento intelectual e emocional da criança deve prevalecer sobre a regra etária, garantindo-lhe o direito à matrícula conforme sua aptidão. No presente caso, não é tratada outra hipótese, senão a de que o Relatório Socioemocional deve prevalecer sobre a regra etária, pois adentra às especificidades do desenvolvimento de cada menor. 

A existência de documento técnico que ateste que a criança, ainda que aniversarie fora do lapso temporal legal, está no período de prontidão para cursar série especificada é fundamento para aplicação do distinguishing no caso concreto.

Não se trata de pôr em xeque a constitucionalidade da norma legal que trata do critério etário. Em verdade, reforça-se a legalidade deste dispositivo, contudo, conferindo-lhe uma interpretação à luz do melhor interesse do menor, que, para ser respeitado, deverá considerar o relatório socioemocional no momento da matrícula escolar.

Na mesma linha argumentativa, o TJDF já mitigou o critério etário que limita a criança que completa seis anos alguns dias após a data de 31 de março, pelo princípio da razoabilidade, senão vejamos: 

CRITÉRIO ETÁRIO PARA ACESSO À EDUCAÇÃO INFANTIL – PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

O indeferimento de matrícula de criança prestes a completar a idade mínima exigida por lei para o ingresso em pré-escola fere o direito de amplo acesso à educação. (Acórdão n. 1011427, 20160110120645APO, Relator Des. MARIO-ZAM BELMIRO, 8ª Turma Cível, Data de Julgamento: 30/3/2017, Publicado no DJe: 26/4/2017 – grifos nossos).

Considere-se que a criança de fato terá 6 anos no semestre que adentrará no ensino fundamental, mas tudo dependerá de seu próprio rendimento escolar durante o Ensino Infantil. Vale ainda ressaltar legislações aplicáveis ao caso: 1. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) estabelece que a educação infantil deve respeitar o desenvolvimento integral das crianças, garantindo-lhes acesso ao ensino conforme sua capacidade e maturidade. 2. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 53, reforça essa diretriz ao prever que "a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho". 3. Já a Constituição Federal, no artigo 208, V, assegura que o acesso a níveis mais elevados de ensino deve ocorrer "segundo a capacidade de cada um", além do 227, o que fundamenta a possibilidade de flexibilização do critério etário quando há comprovação de maturidade da criança.

Assim, apesar da legislação impor que para ingresso no Ensino Fundamental a criança tenha que ter completado 6 anos de idade até 31 de março do ano da respectiva matrícula, a prova pericial que ateste que ela tenha maturidade e prontidão para tal permite a aplicação do distinguishing no caso concreto e a inclusão da criança naquela série, dada a interpretação sistêmica dos dispositivos à luz das normas fundamentais principiológicas de inclusão e amplo acesso à justiça.


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