Reduzindo as expectativas sobre os efeitos da RN 623 da ANS, que repete a aposta nas ouvidorias dos planos de saúde

Reduzindo as expectativas sobre os efeitos da RN 623 da ANS, que repete a aposta nas ouvidorias dos planos de saúde

Postado em 18/07/2025

Por Elano Figueiredo - Ex-Diretor da ANS, Especialista em sistemas de saúde, Fundador do Portal Justiça e Saúde, Professor e Comentarista da CBN Recife.


Uma interpretação peculiar da RN 623, apontando dúvida se ela não é uma mera repetição das mesmas diretrizes constantes na norma que lhe antecedeu – a RN 395.

A agência reguladora dos planos de saúde já editou 637 resoluções normativas, além de portarias, instruções e outros tipos de normas. Mas nem todos lá reconhecem que houve excesso e alguns continuam requentando atos que já não deram certo.

Óbvio que o desenho de agência reguladora tem como premissa mais importante o acompanhamento dinâmico, diário, da evolução de mercados sensíveis. Os assuntos merecem aperfeiçoamento constante. Mas aperfeiçoar não significa trocar seis por meia dúzia.

E a crítica aqui ainda está amena. Esse texto poderia analisar as normas que pioraram o funcionamento do mercado, ou aquelas que simplesmente não tiveram adesão alguma, nem de quem fiscaliza.

O momento reclama mergulhar na questão, porque dia 1º de julho entrou em vigor a RN 623 da ANS. 
De novo, instituições e veículos criam a esperança de que as ouvidorias terão papel importante nas operadoras; que agirão positivamente no direito de revisão de negativas, que agilizarão o atendimento e que a resposta recebida pelo consumidor vai ficar mais clara.

Vários juristas comentaram a iniciativa do regulador, aplaudindo o que seria uma medida de proteção ao consumidor.

Mas não é. Trata-se de um “nada jurídico”

No passado, os reguladores de 2016 apostaram na mesma coisa e não deu certo, com a RN 395. A diretoria da ANS, na época, comemorava a ideia de ter, na ouvidoria, uma 2ª instância das negativas de atendimento, o que iria diminuir o número de reclamações na agência e no Judiciário. E, de lá para cá, o que estamos vendo? O contrário: um crescimento exponencial dos processos e da insatisfação dos beneficiários com o atendimento.

A aposta está no caminho errado de novo, apenas com número novo; requentada. A resolução 395 já tentava garantir ao consumidor “informação adequada, clara e precisa quanto aos serviços contratados, especialmente quanto às condições para sua fruição e aplicação de mecanismos de regulação” . Está lá no art. 2º, IV.

Também já constava que “havendo negativa de autorização ..., a operadora deverá informar ao beneficiário detalhadamente, em linguagem clara e adequada, o motivo da negativa de autorização do procedimento, indicando a cláusula contratual ou o dispositivo legal que a justifique” . E, à escolha do consumidor, essas informações deveriam ser prestadas por escrito (§ 1º, do art. 10).

Então, é um grande desafio entender qual é o componente novo que a RN 623 estaria implementando no setor.

Mais uma vez, houve quem comemorasse que, agora, as ouvidorias teriam um papel mais ativo nessa relação. Esses não leram a resolução de 2016, revogada e substituída pela festejada 623.

No falecido art. 11, já estava “garantida a faculdade de requerer a reanálise de sua solicitação, a qual será apreciada pela Ouvidoria da operadora”.

Então, quem entende minimamente do assunto percebeu que estamos diante de um marketing normativo. É um face lifting da RN 395, vendido como reforma completa e estruturante. E não vai mudar absolutamente nada no funcionamento do setor!

Ora, o aumento das queixas que testemunhamos hoje está diretamente relacionado ao seguinte: reajustes exagerados nos planos coletivos, fraudes e excessos, o que leva a um maior rigor da análise das prescrições e, consequentemente, ao aumento de negativas e insatisfações. Tem também os cancelamentos unilaterais, pelos quais se busca expulsar os consumidores de alto custo.

Assim, não se pode ter a esperança de que esses complexos problemas, de essência, serão resolvidos na ouvidoria. Até vai ter reclamação solucionada sim, mas marginalmente.

Com efeito, o que resolve de verdade é o alinhamento dos envolvidos, protocolos.

No movimento de implantação da CBHPM, quando os médicos estiveram muito fortes e unidos no estabelecimento de uma tabela de procedimentos, um grande CEO disse: “nossa operadora não se nega a reconhecer o valor do trabalho médico. Topamos negociar a tabela. Mas não abrimos mão de ter protocolo para tudo. O combinado não sai caro.”

Isso leva a exemplo bem atual. Um dos maiores problemas da judiciliazação da saúde, hoje, está na subjetividade das terapias prescritas. Tem profissional que indica duas sessões por semana e tem outro que prescreve duas por dia, a semana toda, para quadros idênticos. Qual estaria correto?

Claro que os tratamentos de saúde não podem ser engessados a uma regra clínica universal. Mas diretrizes com margens de atuação se mostram perfeitamente aplicáveis.

Por que não existe muita discussão sobre partos autorizados pelos planos? Exatamente porque todos sabem exatamente o protocolo para um parto normal, prematuro, de risco etc.

Pode não ser possível fazer protocolo para tudo na saúde, mas se fizerem para o que dá já ajudaria demais no número de reclamações. Entretanto, será que os prestadores de serviços querem tornar mais objetiva a entrega ou preferem se valer do subjetivismo para continuar dizendo que a independência profissional do médico é um "cheque em branco"?

A ANS, nesse ponto, até faz sua parte. Tem as diretrizes de utilização para o rol e emite vários pareceres. Mas aí, quando ela acerta, vem o Judiciário, ou mesmo o Congresso, e fulminam a credibilidade do rol e das DUTs. Difícil!

Enfim, a insatisfação na saúde tem jeito sim. Protocolo é a solução. Alinhamento e margens para intercorrências deveriam ser a aposta das autoridades, aqui envolvendo não só a ANS, mas os Conselhos de Medicina, as Sociedades de Especialidades médicas - o Ministério da Saúde tinha que fazer pressão política sobre isso.

Há esperança, mas não pela RN 623.