
Notas Sobre o Agosto Lilás o Olho Roxo no Rosto da Mulher: As Cores da Violência nos 19 Anos da Lei Maria da Penha
Postado em 01/08/2025
Por Emília Queiroz - Advogada e Professora. Presidente da Comissão de Direito Educacional da OAB/PE. Diretora de pós-graduação da ESA/PE.
Nesse artigo, que é de opinião, já começo pedindo ao meu leitor uma licença poética! Isso porque já tinha planejado mil abordagens, umas menos floridas que outras, para falar sobre o mês dedicado ao combate da violência contra as mulheres, que calha com o mesmo mês que se comemoram as profissões jurídicas: “agosto”, mas uma notícia emblemática recente de um caso específico de tentativa de feminicídio que tomou a mídia nacional só me faz lembrar de agosto, como “mês do desgosto”, como dizia minha bisa D. Judith, que perdeu uma filha para um genro ciumento, que a matou, foi condenado pelo Tribunal do Júri e ficou impune por indulto presidencial à época.
Venho de uma família como tantas outras tradicionais do nordeste do Brasil com base patriarcal. Muito cedo descobri, por influência da minha mãe e imposição do meu pai, que a educação é o meio mais seguro de libertação das amarras de gênero. E foi assim comigo.
Das minhas conquistas educacionais, a que me marca esse mês foi a do mestrado. Não sem esforços hercúleos, tive o apoio de bolsa de estudos advinda de um edital especial da Capes com a Secretaria Nacional de Política das Mulheres, para estudar exatamente o combate à violência doméstica e familiar de gênero. O mestrado mudou definitivamente minha vida! Seja pelos conhecimentos que adquiri, pelos bons empregos que me possibilitou e principalmente pelo networking que tive dentro do universo do estudo de gênero. Diante disso, sinto-me grata e na obrigação de divulgar notas sobre o que aprendi e experenciei.
Em 07 de agosto de 2006 foi promulgada a Lei 11.340, Lei Maria da Penha. Mas, como toda conquista feminina, essa também veio com muita luta e sofrimento. Na realidade, precisou-se de um leading case trágico para lhe fundamentar. Foi justamente Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de várias das formas de violência doméstica por parte do marido, até acabar paraplégica e com as filhas para criar sozinha! Diante da negligência sistêmica do Brasil em coibir esse tipo de violência, levou-se o caso ao conhecimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o país amargou a vergonha de ser o primeiro a ser condenado como negligente no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Dentre a condenação, além da pecuniária que o Brasil teve que pagar à Maria da Penha, foi ainda compelido a tomar providências para coibir esse tipo de violência estrutural, por pressão internacional.
Infelizmente, a existência de uma lei não é suficiente para constranger o algoz a não praticar os crimes que ela imputa! Assim, treze anos depois do advento da Lei Maria da Penha no Brasil, no mês de seu aniversário, foi lançado o movimento “Agosto Lilás”, para divulgá-la e fortalecer a conscientização sobre o combate aos tipos de violência que ela coíbe. A cor lilás simboliza isonomia, respeito e por isso foi escolhida para representar a luta das mulheres por igualdade e fim da violência de gênero.
Ao longo desses anos, a legislação vem sofrendo aperfeiçoamentos e causando impacto nos demais Poderes nacionais, com ampliação de políticas públicas, formação jurisprudencial maciça da proteção integral da mulher vulnerável etc.
Mas, nesses 19 anos de aniversário da lei ainda nos chegam índices alarmantes, como os divulgados no Relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça(CNJ) revela que a cada dois minutos uma mulher é vítima de violência doméstica no país (2023) e 70% dos feminicídios têm histórico anterior de violência não denunciada. Isso mostra que ainda há subnotificação desses crimes. Imaginem então se todos os casos fossem comunicados, como estariam esses números!
Pior, a crueldade segue imperando nas modalidades de feminicídio consumado ou tentado! Tanto é que às vésperas do início formal do agosto lilás, deparamo-nos com um vídeo real que viralizou nas redes sociais, mostrando a performance impressionante de um macho alfa de avantajada compleição física desferindo 60 socos no rosto da namorada, franzina e surpreendida de supetão, que estava acuada e sem chance de fuga, dentro de um elevador fechado com o algoz.
A cena foi de tanta selvageria que muitos canais tiveram que borrar o vídeo da mulher destroçada e desfigurada, mas mesmo com o embaçado do desfoque, sobressaia-se a cor púrpura na imagem, da mistura do sangue vermelho com os hematomas instantâneos roxos no rosto dela.
Sim, o hiperfoco do algoz foi o rosto da mulher! O rosto de feições delicadas e peculiaridades de forma que a tornavam bela nos padrões de beleza atuais. Na teoria dos espelhos de Lacan, os olhos da mulher amada deveriam refletir a perfeição da imagem do narciso. Talvez o pavor de ver o próprio reflexo de sua imagem horripilante nos olhos da vítima, motivaram o algoz a deferir-lhe 60 socos em 35 segundos, justamente na área dos olhos e adjacências. O resultado alcançado pelo criminoso foi pelo menos 50% atingido: com sua força física animalesca feriu o olho direito da vítima de forma que ela não mais pôde abri-lo e deixou o esquerdo também roxo, debilitado e sem o brilho de outrora. De fato, livrou-se de ver seu reflexo horripilante nos olhos da mulher que dizia ser sua amada.
Sim, em pleno agosto lilás nossa vítima estampa as páginas policiais com seu rosto, outrora lindo e revestido de perfeição, hoje desfigurado com olhos roxos e provavelmente ossos fraturados! A princípio, a covardia travestida de “surto claustrofóbico” se deveu à legitimadora genérica do ciúme, típico do macho narcísico.
Mas, por mais que critiquem e falem numa baixa efetividade da Lei Maria da Penha e da campanha de conscientização do agosto lilás, a reação do porteiro do prédio da vítima que viu tudo ao vivo pelas câmeras de monitoramento da portaria, de chamar a polícia, provavelmente se motivou pela retaguarda integral que hoje temos no Brasil. Ele “meteu a colher” e pode ter sido essa coragem dele que impediu mais um feminicídio consumado para engordar os índices vergonhosos do nosso país!
Políticas públicas, temos. A lei específica já temos, e das melhores! Julgamento em perspectiva de gênero (CNJ), temos. Sentenças rígidas, temos. O que falta então para nesses 19 anos de Lei Maria da Penha virarmos o jogo?
Creio que nos cabe agora somar isso tudo e promover uma virada cultural pelo fim da violência doméstica e familiar contra a mulher, a partir dos nossos lares, nossas rodas de amigos, nossas escolhas por produtos e serviços que encampem a luta, que é de todos!
E que nos próximos agostos, tenhamos o lilás apenas na bandeira do movimento de combate à violência de gênero, sem suas gradações de púrpura e roxo, para que os rostos das mulheres sejam intocáveis por agressões e estampem apenas suas belezas naturais e as cores suaves de seus sorrisos!
Envie seu artigo de opinião jurídica para secretaria@esape.com.br, a fim de que seja publicado na seção Opinião ADV do Blog da ESA-PE após conformidade editorial.