
Responsabilidade civil e o direito de ação: o dever de reparar os danos da litigância abusiva
Postado em 22/05/2025
Por Francisco Muniz - Advogado inscrito na OAB-PE e na Ordem dos Advogados Portugueses, Doutorando em Direito pela Universidad de Coimbra, Visiting Researcher na National University of Singapore, Mestre e Bel. em Direito pela UFPE, Diretor de Intercâmbios da ESA-PE
Debates doutrinários e jurisprudenciais sobre a delimitação dos conceitos de litigância predatória, abuso do processo, assédio processual, sham litigation e tantos outros conceitos correlatos, bem como suas similitudes e distinções, estão cada vez mais em evidência, mas um consenso sobre temas tão complexos ainda é um objetivo a ser alcançado. A ausência de um entendimento uniforme sobre os limites da litigância impacta diretamente no desafio de se imputar de responsabilidade civil pelos danos decorrentes do abuso do direito de ação.
A salvaguarda do acesso ao direito e aos tribunais foi um objetivo político inserido no contexto da consolidação dos direitos humanos no Século XX, o que ensejou normas para garantir a justiça gratuita em determinadas hipóteses, isenção de ônus sucumbenciais em ritos processuais específicos e facilitação de ônus probatórios a determinados litigantes, por exemplo. No Século XXI, o desafio é outro: um grande dilema dos ordenamentos jurídicos é reafirmar o direito de acesso à justiça e, ao mesmo tempo, apresentar respostas ao seu uso abusivo em um cenário de aumento exponencial do número de litígios judiciais, que traz consigo uma crescente intolerância à utilização desarrazoada do direito de ação.
O crescente aumento no volume de litigância é um fenômeno que abrange países com distintos níveis de desenvolvimento e que muitas vezes se veem igualmente assolados com a utilização desmedida do sistema judicial, a exemplo de Portugal, Brasil e Estados Unidos. Neste cenário contemporâneo, caracterizado por sociedades cuja população está mais consciente dos direitos de que dispõe e nas quais os tribunais judiciais são vistos como a principal (e praticamente exclusiva) forma de se alcançar justiça, surgem os “litigantes frívolos”, a aforar ações inúteis e ações que, ainda que possuam utilidade para o autor, extrapolam os limites da litigância responsável por configurar abuso do direito de ação e provocar consequências ilícitas.
À semelhança da generalidade dos direitos, o direito de ação possui limites ao seu manejo, cuja transposição leva o sujeito ao terreno da ilicitude. Não se confunde, entretanto, delinear os limites e formas de concretizar o seu exercício legítimo com a estipulação de um dever de não propor ações ou de não sucumbir após a propositura de uma demanda perante os tribunais: busca-se, sim, definir as possibilidades e os pressupostos para a responsabilidade civil por ilícitos que decorrem do manejo abusivo do direito de ação como um instrumento apto a causar danos.
Delimitar o direito de ação como a possibilidade de se buscar uma tutela jurisdicional dotada de predicados necessários à atribuição de uma decisão justa acerca de uma pretensão implica concluir que a existência de direito material não é pressuposto da existência do direito de ação; seu exercício legítimo encontra-se vinculado à observância da finalidade e sentido do processo, bem como aos valores fundamentais do sistema jurídico, configurando-se um poder correlacionado a diversos deveres jurídicos.
Mesmo quando a demanda é exercida a partir do meio processual adequado e se mostra necessária a tutela jurídica dos direitos do autor, o seu desmembramento por múltiplas ações, ao invés de sua propositura em um único processo (ou no menor número possível), poderia configurar um desvirtuamento dos fins do processo ou do dever de mitigar a perda da contraparte, para além dos ônus já inerentes à sujeição à ação (incômodo e angústias naturais da situação de se encontrar inserido em um litígio judicial, contratação de advogados, presença em audiências, possibilidade de arcar com os ônus sucumbenciais...), de modo a configurar um propósito meramente emulatório na pulverização da demanda por várias ações.
Existem limites funcionais e extrínsecos ao direito de ação, de modo que a mera observância formal das regras processuais não configura a legitimidade do seu exercício: além da adequação aos requisitos processuais, deve-se observar o objetivo da ação e o sentido do direito processual civil. Configura, por exemplo, um exercício disfuncional de posição jurídica aproveitar-se do direito de ação para concretizar um processo judicial que provoque danos não abrangidos pela esfera da justa decisão que dele advenha ou um processo com finalidade diversa daquele que lhe fornece o seu sentido de existência.
As premissas acima expostas, já minudenciadas em outro texto deste autor, foram expressamente acolhidas e citadas no acórdão do Plenário do STF que julgou a Reclamação n° 23.899-PR, relatado pela Min. Rosa Weber e publicado em 30/10/2023, um dos precedentes paradigmas para a definição de limites ao exercício legítimo do direito de ação, mas o Poder Judiciário ainda precisa avançar mais no diálogo com a doutrina e na construção de uma jurisprudência com precedentes vinculantes que fixem critérios de imputação de responsabilidade civil aos litigantes abusivos.
Não é por ser extraído de norma de direito fundamental que o exercício do direito de ação não estará limitado à proibição do abuso de direito: violar a confiança ou buscar vantagens mínimas mediante provocação de danos exacerbados configuram hipóteses de abuso do direito de ação. Também a propositura de uma ação arrimada em fatos sabidamente inverídicos, com o objetivo único de lesar o demandado ou terceiros, configura uma lide temerária e abuso do direito de ação, devendo o lesante responder pelos danos decorrentes.
À vista dos exemplos acima apresentados, não se pode entender possível existir uma liberdade de exercício de direito de ação sem a correlata responsabilidade por todos os danos que podem ser causados em decorrência do manejo de direitos processuais, sejam culposas ou dolosas as condutas. Dissociar a íntima relação entre a responsabilidade e a liberdade implicaria macular o substrato comum ao sentido que norteia a responsabilidade civil e o direito fundamental de acesso à justiça, que é resguardar a pessoa humana e os direitos que lhe são inerentes.
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