
Casando com IA, Criando Reborn: A Sociedade que Ama Sozinha
Postado em 22/05/2025
Por Graciliano Cintra - Advogado, Professor em Direito das Famílias e das Sucessões, Conselheiro Estadual da OAB/PE, Pós-graduado e mestre em Direito.
No dia 14 de abril de 2025, ocorreu no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a celebração de 10 anos do “Encontro Reborn”, onde vários proprietários e fãs do hoje polêmico bebê reborn lotaram — não o Ibirapuera, já que o público não era tão considerável —, mas as redes sociais, com seus bonecos hiper-realistas.
A repercussão foi enorme, e o debate público ganhou relevo nas redes: advogados relatando a procura de clientes para promoverem ações de guarda em relação aos seus “filhos”, deputados pedindo que os “pais” de bebês reborn sejam tratados no SUS, por “vínculos afetivos disfuncionais”, além de críticas e chacotas de todas as ordens.
Queira-se ou não, o bebê reborn é um assunto que a sociedade — e o mundo jurídico — precisa conhecer e tratar. E já trata.
Em 2013, o diretor Spike Jonze nos apresentou o filme Her (Ela, em tradução literal para o público brasileiro), em que o personagem de Joaquin Phoenix se apaixonava por Samantha (voz de Scarlett Johansson), uma inteligência artificial.
No filme, o consagrado diretor americano trata, nesta ficção (talvez nem tanto), de vários aspectos da solidão no mundo pós-moderno, dores e medos, e como o desejo de não sofrer, de não se arriscar e até mesmo de não se comprometer, pode levar uma sociedade a adotar o caminho da certeza — em relações absolutamente controladas pelo indivíduo, quando o outro só te entrega a parte boa e te exclui dos sofrimentos inerentes a todas as relações.
Da ficção para a realidade, 11 anos depois do lançamento de Her, a artista plástica espanhola Alicia Framis anunciou seu casamento com AILex, uma inteligência artificial, aumentando ainda mais o debate sobre os limites da interação entre o virtual e o humano. A cerimônia ocorreu em 9 de novembro de 2024, em Roterdã, Países Baixos, e está disponível no YouTube.
Não só as relações virtuais são objeto do debate, mas também o próprio espaço virtual. O Metaverso foi a promessa de um mundo completamente paralelo, em que tudo o que acontece aqui, no mundo real, poderia ser replicado nesse universo digital, com aplicações em todas as áreas: shows, reuniões, educação, jogos online, viagens de férias… As possibilidades são infinitas.
No filme Don’t Worry Darling (Não se Preocupe, Querida), de 2022 — dirigido por Olivia Wilde e estrelado por ela mesma, além de Florence Pugh, Harry Styles e Chris Pine —, nos é apresentada uma realidade virtual coletiva (alerta de spoiler), onde homens aprisionam suas esposas ou companheiras em câmaras de sobrevivência para que vivam com eles neste mundo, alheias à verdade, enquanto são reféns na realidade.
O fato é que, com o avanço da tecnologia, temos sido cada vez mais reféns do mundo virtual, do inanimado. Lembro que minhas tardes juvenis eram de brincadeiras com os amigos — no prédio, na rua ou na praia —, principalmente jogando bola ou andando de bicicleta. Saía de casa logo depois da lição, voltando antes de escurecer (por ordem cogente cuja sanção não gostaria de experimentar).
Hoje, por diversos fatores, como a segurança e as facilidades do digital, crianças e adolescentes têm tido menos essa experiência, passando muito mais tempo no virtual. Perde-se na interação humana presencial, enquanto a virtual, ainda mais em razão das redes sociais, é extremamente ampliada.
Há, indubitavelmente, uma enorme mudança no comportamento humano na última década, principalmente em razão do virtual, de suas vantagens, facilidades e encantos.
Zygmunt Bauman, ao retratar a sociedade líquida em diversos livros, analisa que, na “sociedade de bolso” da pós-modernidade, há um declínio das relações de grupo, partindo-se para um individualismo aprofundado do ser, onde todas as conexões humanas cabem no seu “bolso”: onde está um smartphone, que dá acesso a tudo — ao conhecimento, ao trabalho, aos amigos, ao amor.
Dentro deste contexto social atual, não é difícil imaginar que as relações afetivas parentais também possam ser “substituídas” — ou, ao menos, supridas em sua ausência — por seres inanimados, como no caso dos bebês reborn.
Há muito cresce o número de “pais de pet” (como este que vos escreve, pai do pequeno Rodolfo Aureliano, um belíssimo Shih Tzu com 7 anos de idade), sendo que diversos países pelo mundo, inclusive o Brasil, vêm reconhecendo semelhanças (não igualdade) entre as relações parentais entre humanos e com os “animais de estimação”.
Mais recentemente, temos os “pais de planta”, que cuidam, dão nome e conversam com seres que sequer são animais ou capazes de qualquer tipo de raciocínio.
Essas transferências de afetividade vêm ocorrendo há muito tempo e nos parece que possuem total relação com o tipo de sociedade em que vivemos, com o mundo digital e com o nosso isolamento enquanto indivíduos — além da busca de expressar nossa afetividade.
Enquanto operadores do Direito, precisamos entender a sociedade em que vivemos, o sentimento das pessoas e os valores que elas atribuem a cada coisa. Tratar com zombaria o que nos é diferente não deve ser a reação adequada a uma questão tão séria como a busca e expressão da afetividade — e da solidão.
As respostas para as novas questões que nos são apresentadas não são fáceis. Como disse o eterno mestre Caetano Veloso: “Narciso acha feio o que não é espelho.” Mas precisamos enfrentar essas questões e buscar respostas, sempre visando à dignidade da pessoa humana. Se não for assim, que sociedade seremos?
Por fim, lembro de uma minissérie inglesa de 2019, Years and Years (sem tradução para o português), que se passa num futuro distópico próximo e trata de diversas questões atuais e possivelmente futuras.
A série nos apresenta o casal Lyons, que, em razão de um comportamento estranho, desconfia que a filha adolescente mais velha, Bethany, é transsexual. Para aquela família, ser transsexual não era um tabu, pois conviviam com pessoas homossexuais, conheciam pessoas transsexuais e estavam prontos para acolher a filha quando ela fosse fazer sua “grande revelação”.
Contudo, no dia em que Bethany vai revelar por que está tão calada e não quer interagir com as pessoas — o que realmente lhe aflige —, ela revela que é trans, mas não sexual, e sim transumana, e que seu desejo era viver como um emoji no mundo digital. Isso não foi aceito de nenhuma forma por seus pais, que reagiram bruscamente à ideia.
Estamos preparados para tudo que já vimos, mas o novo sempre nos assusta. É preciso tratar as expressões do comportamento humano com seriedade e acolhimento — e não com chacotas e zombarias. O momento é oportuno à reflexão: entender como chegamos aqui e como iremos lidar com os novos desafios que nos são apresentados — sem preconceitos.
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